Masud Khan: Uma Psicanálise sem Fronteiras
Mohammed Masud Raza Khan (1924–1989), mais conhecido como Masud Khan, foi um psicanalista nascido em Punjab (Índia) — que é o atual Paquistão. Formou-se em literatura Inglesa na Universidade de Punjab , mudou-se para Londres em 1946, e foi psicanalista aos 26 anos de idade. Carismático, irreverente e despretensiosamente ofensivo, Khan foi causa de afetos ambivalentes e palco para polêmicas que envolviam seu manejo clínico, comportamento e relacionamentos com supervisionandas. Com Khan resta questionar-se acerca das fronteiras de uma análise, termo que tão bem casa com a existência estrangeira do psicanalista.
Não se sabia se Masud era um muçulmano devoto, mas certamente ele se denominava assim (Khan,1988,p.53). Ele era filho de um nobre dono de terras com uma dançarina. Cresceu em um lar com uma mãe adicta a opioides e um pai adepto a relacionamentos poligâmicos, o que o fez um dentre vários irmãos. Com o falecimento do pai, herdou a riqueza e dedicou-se à própria análise pessoal e aos estudos, o que lhe rendeu uma ascensão rápida no meio psicanalítico.
Khan foi analisante de Ella Sharpe, John Rickman e Donald Winnicot, este último com quem teve um estreita relação — além de analisante, foi seu supervisionando e editor de alguns dos trabalhos de Winnicot. Khan também teve autoria pela tradução e escrita de inúmeros artigos, bem como escreveu 4 livros que incluíam o seu conceito de trauma cumulativo, seu trabalho com as perversões e os estados-limites, e o último e mais polêmico deles When Spring Comes: Awakenings in Clinical Psychoanalysis (1988), escrito no mesmo ano da sua expulsão da Sociedade Britânica de Psicanálise.
Fiz essa breve introdução sobre a vida do Khan, mas é do seu último livro que quero falar. Se você gosta de ler sobre psicanálise, indico pelo menos esta leitura dos escritos de Khan. Um trecho de um de seus casos clínicos, me arrebatou, justamente porque acho que exemplifica bem a densidade da escuta e a sutileza do ato analítico, me permitam compartilhar a pontuação com interpretação que Khan faz ao seu analisante Bill.
He started off by saying: ‘Of course, you want to know about my childhood’, and told, affectlessly, rather bizarre ‘actual’ memories and fantasies from the ages of three, five and eight years (of Khan,1970). He paused, expecting a response from me, and I said simply:
‘What else have you rehearsed to declaim here?’
Para mim, este caso foi o mais emocionante do livro, além de Freud, nunca tinha lido um psicanalista escrever com tanta vida e poesia sobre seus casos. Percebe-se que Bill, era um dos analisantes que mais marcaram Khan, ele cita no livro que fez alguns artigos sobre Bill e que este estava em percurso há cerca de 30 anos. Entre idas e vindas, Bill chegou ao consultório de Khan indicado por outro profissional, sua demanda: Homossexual, com pensamentos ruminativos, ansioso e obsessivo. Sentenciado a um prognóstico pobre. Será?
Este trecho mostra que Khan não recuou a tentativa de Bill em desdenhar do suposto saber do psicanalista, quando Bill o provoca e diz '' É claro que você quer saber sobre minha infância…'' Khan em minha opinião faz uma aposta na associação livre e a relança '' O que mais você ensaiou para dizer aqui?'' .
Quando assim o faz, aponta o elemento surpresa da análise, bem como demonstra o seu interesse em ouvir o que dali o analisante pode produzir.
Essa intervenção me capturou e não tive outra opção além de saber um pouco mais sobre este psicanalista tão criticado. Se por um lado Masud Khan , na opinião de muitos, não era ético, ou seja não estava ali enquanto função, por outro eu digo que ele era sujeito antes de ser um psicanalista, nesta intervenção será que posso dizer que ele foi os dois?
Khan inicia o texto falando sobre um laço que ambos tinham que não era possível explicar. O psicanalista conta em tom de agradecimento sobre a jornada de ambos, uma história de sofrimento e de sobrevivência (em suas palavras). Fala que Bill lhes escrevia com frequência, até que um dia , não o fez mais. Então, tem a notícia de que ele havia falecido, seu pedido? Escreva a Khan que morrerei um homem feliz — e assim sua esposa o fez.
A beleza de uma análise, não podia ser contada de outra forma.Não é uma questão de transmissão de uma técnica, mas de transmissão de uma singularidade, própria de um efeito analítico. Khan poderia ter falado sobre o tipo clínico de Bill, ter divagado sobre sua teoria do Self, trauma cumulativo, em vez disso ele optou por contar a história de seu analisante, e vez ou outra, nos dizia o que fazia com isso. Khan poderia ter finalizado dizendo que Bill havia superado sua ''neurose'', mas será que é assim que a gente '' finaliza'' a narrativa de uma vida? Em vez disso, Khan:
In a sense this article is as much my working through a mourning as a case history, written with affection and gratitude for one who will never read it. But the dead live on through those who remember them, as I remember Bill.
De certa forma, este artigo é tanto o meu trabalho de luto como uma história de caso, escrito com afeto e gratidão por alguém que nunca o lerá. Mas os mortos vivem através daqueles que os recordam, tal como eu recordo o Bill.
O título do livro já mostra a beleza dele por si só. Se é aqui que temos o fatídico caso de Luiz, cujo resultado foi uma intervenção violenta, a qual tudo foi desvelado, exceto o desejo do analista, temos também algo para apreciar como o caso de Bill que faze jus a sua história. O livro é importante por isso, porque não mostra muita coisa além da realidade do que é ser um humano, mesmo que ser um humano inclua também ter atitudes desprezíveis.
Masud Khan era conhecido por conseguir escancarar os afetos que os analistas negavam, e com isso atendia os casos que os demais não tinham ''êxito'' em prosseguir. A história da psicanálise é uma história de fracassos, mas principalmente de reconhecer os seus fracassos, talvez, Khan tenha falhado aqui. Pois, às vezes se colocava em um lugar de saber sem faltas e de onipotência, o que conseguimos perceber em alguns trechos deste mesmo livro.
Por isso, entre outros motivos, Khan foi apontado como um analista que incita o gozo, ou que se engaja em uma montagem perversa durante as suas intervenções (Pimentel,2007). Decerto, não é de hoje que se reconhece os riscos que a posição do analista traz, principalmente no que concerne a possibilidade de direção do tratamento pela angústia que faz apelo ao desejo do perverso em causar uma divisão subjetiva, ou da posição de suposto saber que pode facilmente se confundir com um saber sobre o Outro (Andre,1993). Mas vejam só, estes riscos são para todos, talvez Khan os tenha denunciado com sinceridade demais.
O que eu quero dizer é, faz-se uma leitura de Khan e de sua trajetória de forma moralista. É claro que existe uma ética - nem kantiana e nem sadiana, que é a ética da psicanálise. Talvez Khan tenha sido sadeano demais, se tornando não palatável aos kantianos de sua época. É isto que quero dizer. Reconhecer o seu legado, não implica em concordar com suas contradições, e sim perceber no sentido mais radical que isto pode ter , que a análise é sempre uma e o analista também.
Os questionamentos de que a análise de Khan teria fracassado ou que foi em vão, são em minha percepção inutéis. Uma análise é o que ela consegue ser, tanto para o analista quanto para o analisante. O que é uma análise que funciona? É aquela que fabrica um certo tipo de analista? Eu receio que não, acredito que vocês também. Mas é assim que soa quando falamos de Khan.
Podemos até dizer que a intervenção com Luiz não condiz com a ética da psicanálise. Isso tornaria Khan menos analista, menos analisante? Talvez, não sei quais são as fronteiras para estes termos, certamente Khan também não se ocupou em as responder. A mim, só restam os efeitos na pele de sua escrita, da contemplação a indignação, algo causou, e a psicanálise é sobre isso, causar algo.Acredito que neste aspecto Khan a entendeu bem.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
A Transitoriedade (1915/1916) — Sigmund Freud
Referências
Andrea Celenza Ph.D. (2009). Linda Hopkins: False Self: The Life of Masud Khan. The American Journal of Psychoanalysis, 69(1), 87–91.doi:10.1057/ajp.2008.43
André, Serge. A Impostura perversa.(1995). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
Case, L. (2009). False Self: The Life of Masud Khan By Linda Hopkins, New York: Other Press, 2006. 525 pp. Fort Da, 15(2), 108–118.
Khan, M. M. R. (1988). When spring comes: Awakenings in clinical psychoanalysis.London: Chat to and Windus.
Pimentel, Déborah. (2007). Violência e ética. Estudos de Psicanálise, (30), 43–49. Recuperado em 25 de feveiro de 2024, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372007000100006&lng=pt&tlng=pt.