“The fetish,” by Siobhan Dempsey

Perversão, um conceito marginal.

Barbara Solon
5 min readNov 26, 2023

--

A perversão é um conceito marginal, por que marginal? Porque foi feito para se referir as coisas que invertem uma norma e que arrebatam os sentidos para o mal. Desde a referência do verbo em latim pervertere que no século XV já indicava perverter ou corromper, ao adjetivo em latim perversu que descrevia os sujeitos de má índole, a palavra perversão nasceu para servir as coisas e pessoas que ficavam a margem da sociedade, consequentemente naquela época (e atualmente) o que fazia margem era mau.

Obviamente, quando falamos do que é bom e mau, temos que considerar que esse tipo de construção moral serve para controlar determinadas situações que ocorrem no laço social. Ora, não tardou para que o direito canônico e a comunidade cristã se utilizassem do conceito de perversão como forma de fiscalização e controle das práticas sexuais que não contemplassem a reprodução e as configurações matrimoniais concebidas por estas entidades.

Já no século XIX, o saber jurídico convocou a medicina para responder e ser perita de situações e pessoas que tinham práticas sexuais perversas. Neste cenário, novas formas de saber (e poder) se produziram sobre a sexualidade por meio de um paradigma moral. Foi aqui que Freud, ouso dizer, deu um pouco de ‘’ paz ‘’ aos ‘’ perversos’’, pois com sua obra Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905) apontou para a hipocrisia com que era tratada a sexualidade humana.

Afinal, para o criador da psicanálise , TODA sexualidade é perverso-polimorfa, ou seja, tem como o propósito uma autossatisfação e não a reprodução, o que não conceberia a sexualidade uma função meramente orgânica, mas pulsional. Para Freud, todos nós temos uma aptidão a perversão, o que não significa que sejamos perversos.

Mas entramos em outro dilema, o que Freud concebe como perversão? E aí precisamos deixar bem, BEM, mas BEM explicado que existe a perversão enquanto estrutura discursiva, ou seja, como aquilo que posiciona um sujeito diante de sua castração, e existe a perversão própria da sexualidade que é esse conteúdo autoerógeno da fantasia. Assim,proponho que na Psicanálise se fale em perversões, no plural.

Não vou me deter muito a fundo nas questões estruturais, mas acho importante dizer que o paradigma da perversão é o fetichismo, e que para Lacan a mais radical das posições perversas é o masoquismo, pois o perverso é aquele que é o servo do prazer do Outro, ele visa causar uma divisão subjetiva (angústia) para que assim possa se oferecer como objeto do gozo. O perverso ocupa duas posições em sua fantasia: de objeto e de saber sobre o gozo do Outro, e essa é a sua saída para não se haver com a castração materna e consequentemente a sua castração, o perverso transgride a lei paterna, a lei que faz barra ao desejo da mãe.

Vejam só… Muitos psicanalistas confundem a lei paterna com a lei jurídica . Quando o fazem, voltam lá para o século XIX e associam perversão a perversidade, colocam o sadismo como paradigma da perversão. E eu acho que não preciso lembrar, que antes de apontar os atos de X ou Y como perverso, a gente precisa primeiro perceber o quão próximo nossas fantasias estão dessas atuações, afinal o neurótico também infringe a lei e transa para obter prazer, nem que precise de um fetiche (no senso comum da palavra) para isso.

A medicina tentou tirar as perversões do rol da moral para o rol da psicopatologia e as renomeou como parafilias, o meio jurídico não pensou muito e permaneceu com sua percepção: perversão/perversidade. Agora, os Psicanalistas precisam retornar a Freud e a Lacan para não cair nessas tentações discursivas da medicina e do direito, afinal nossa escuta clínica não é e nem deve ser fenomenológica.

O coitado do Calligaris até tentou ajudar nesse quesito, e em sua tese de Doutorado em 1991, criou o conceito de montagem perversa, citando o totalitarismo como exemplo, para indicar a união de dois neuróticos em busca de gozo por meio da mesma fantasia. Ora o Calligaris disse que a sexualidade é o que é, e que a perversão verdadeira é a social. Foi o que bastou para causar uma confusão entre psicanalistas, uns brandam que NÃO EXISTEM perversões estruturais , já outros berram aos 4 ventos que TUDO É PERVERSÃO.

Minha nossa! Se a gente voltar no tempo um pouquinho, conseguimos achar o Seminário de 1986 chamado ‘’ Perversão e o laço social’’ , no qual Calligaris nos alertou que a montagem perversa, nada tem a ver com a perversão estrutural. São conceitos diferentes. É claro que o objeto fetiche pode vir em forma de bastão e não de um pé, mas isso não significa dizer que todo Ditador e todo podólatra sejam perversos em estrutura. Na verdade, é bem mais provável que sejam neuróticos extremamente capturados por seu imaginário ou paranoicos se defendendo da invasão do Outro.

E assim, não existem muitas referências na literatura que façam uma problematização aos efeitos de tais conceitos, me parece até que é confortável essa posição de nomear tudo de perversão. Bem, minha primeira questão é, se totalitários e tarados não são necessariamente perversos, por que ‘’diabos’’ nomear isso de montagem PERVERSA? Não me levem a mal, eu adoro o conceito de montagem perversa, do nome é que eu não sou fã. E eu concordo com o Cunha (2017) o conceito de montagem perversa teria apenas deslocado o moralismo no campo sexual para o social, aproximando as perversões de uma transgressão das normas cotidianas.

O que fica, pelo menos para mim, é o questionamento acerca dos efeitos disso na escuta psicanalítica. Pois há também aqueles que dizem que o discurso capitalista produz perversos, não vou me deter a isso, acredito que seja um tema para um próximo texto. Mas, já deixo aqui a minha deixa de que os modos de gozo no capitalismo, no totalitarismo e na perversão são diferentes. Por que então insistimos em colocar os males sociais na conta da perversão, como se essas coisas fossem estrangeiras a todos nós?

Nada mais ‘’neurótico’’ que isso…

REFERÊNCIAS

CALLIGARIS, C. O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social. In: COSTA, Jurandir Freire; SOUZA, Octavio (Ed.). Tradução de Jorge Bastos Cruz. 1. ed. São Paulo: Fósforo Editora, 2022. 472 p. ISBN 978–6584568488.

CALLIGARIS, C. Perversão — um laço social? Salvador: Cooperativa Cultural J. Lacan, 1986. pp.14–19.

CUNHA, E. L. Perversão, maldade e reconhecimento: notas críticas em torno da ideia de perversão social. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 17, n. 40, p. 607–619, dez. 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2017000300012&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 23 jun. 2023.

LACAN, J. O desejo e sua interpretação (1958–1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016. (O seminário, 6)

LACAN, J. Kant com Sade. Trad. Luiz de Souza Forbes [s.n.t.] de Kant avec Sade. In Écrits. Édition du Seuil, 1966.

LANTÉRI-LAURA, G. Leitura das perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

PEIXOTO Jr., C. A. Leitura Psicanalítica da Perversão Social: Abordagens Atuais. 134. ed. Rio de Janeiro: [s. n.], 1996. 35 p. ISBN 14137909.

--

--