Psicanálise e Saúde Coletiva: Distanciamentos e Intersecções.

Barbara Solon
4 min readNov 22, 2023

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A Saúde Coletiva data o início de sua história na década de 50, mas se estrutura de fato enquanto um campo do conhecimento a partir da década de 70. Conforme (Nunes,1994) Influenciada pela Medicina Social e Medicina Comunitária, a Saúde Coletiva traz como proposta uma crítica ao cuidado hospitalocêntrico e um estímulo a uma visão biopsicossocial do indivíduo. Este movimento ganha força no Brasil por meio da Reforma Sanitária com a 8 Conferência Nacional de Saúde (1986) que teve como consequência a regulamentação do Sistema Único de Saúde (1990).

Assim, O SUS é construído sob forte influência do campo da Saúde Coletiva e possui como um de seus princípios doutrinários a integralidade, que acredita em um indivíduo integral, que requer uma assistência intersetorial e multidisciplinar. É neste cenário multidisciplinar, que se convocam diferentes saberes para uma articulação de uma prática multiprofissional. É muitas vezes, neste momento, que o Psicanalista entra na cena das Instituições Públicas.

É aqui que contemplamos a primeira diferença entre a Psicanálise e a Saúde Coletiva, vejamos de forma mais atenta, as Instituições Públicas convocam o Psicólogo, o convocam para que este ouça ao indivíduo, e como que em um quebra-cabeça a ser completado, a peça do Psicólogo são os seus ouvidos ao que o paciente tem a dizer acerca do seu adoecimento.

E aí me desculpem se pareci vulgar ao associar o indivíduo a um quebra-cabeça a ser montado. Mas, preciso que vocês lembrem desta parte, pois se os diferentes saberes possuem cada um a sua peça que faz integralidade ao indivíduo, o Psicanalista será a ''peça'' que causa falta neste. Continuemos.

Na maioria das vezes é pela convocação do Psicólogo que o Psicanalista entra nestas Instituições. Só que a função do Psicanalista consiste em não responder à demanda, muito menos essa de ouvir o indivíduo e atender suas necessidades. Pois, para o analista o que interessa é escutar o sujeito, pela ética do desejo, ou seja, da falta. Cito e concordo com Safouan (1989) em que o ecletismo estrutural nas propostas terapêuticas é considerado consequência de uma indefinição teórica de saúde mental, esta insegurança utiliza-se da teoria pluri dimensional do indivíduo como uma ilusão de controle da doença. Ou seja, o conceito de indivíduo biopsicossocial é um sintoma social.

Existe um artigo ‘’ Saúde mental: uma clínica sem privilégios (2007)’’ de Marcelo Veras que aborda de maneira assertiva o que seria então a proposta psicanalítica diante do discurso da saúde, ora se existe uma dificuldade conceitual quanto as definições de Saúde Coletiva, e que o seu principal atravessamento é busca de um bem-estar reconhecidamente utópico em sua totalidade pelos próprios profissionais da área, existe algo que resta ao Psicanalista e este resto é o espaço ao bem-dizer e a uma não totalidade de saber. Assim,

Na conversação multidisciplinar a psicanálise se destaca por explicitar esta diferença, não como um discurso de exceção e sim como um discurso que recolha as exceções, ou seja, os fragmentos de ditos que não fornecem sentido algum à saúde mental e que representam, porém, o que o sujeito tem de mais íntimo.

( Veras,2007,pp.6)

E as intersecções entre saberes onde ficam? Se me permitem usar uma analogia com a Geometria , eu diria que a Psicanálise e a Saúde Coletiva funcionam como retas concorrentes: São retas distintas que possuem apenas um ponto em comum, o vértice. O que seria esse vértice, será que podemos tirar algum ''proveito'' dele?

De acordo com (Costa, et al.,2017) em nenhum momento a Psicanálise se propõe fazer par com este encontro ‘’ interdisciplinar ‘’ dos discursos, ou fazer uma complementariedade de saberes. Visto que a psicanálise trabalha com a divisão do sujeito e a Saúde Coletiva trabalha com sua unificação. No entanto, há de se notar que tanto a Psicanálise quanto a Saúde Coletiva são críticos e resistem aos efeitos do neoliberalismo no campo da saúde, efeitos estes que individualizam essa discussão por responsabilizar o indivíduo pelo seu adoecimento e por promover práticas de '' cuidado '' baseadas no consumo, principalmente de fármacos.

Diante deste cenário, talvez, a abertura da Saúde Coletiva para novos saberes nas discussões , e o desencontro da Psicanálise com suas premissas, possam ter alguma potência no que diz respeito a produção de novas perspectivas em saúde. As retas concorrentes seguem seus caminhos diferentes, porque por meio de um ponto em comum puderam fazer suas objeções.

REFERÊNCIAS:

COSTA VAL, A. et al.. Psicanálise e Saúde Coletiva: aproximações e possibilidades de contribuições. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 1287–1307, out. 2017.

NUNES, E. D.. Saúde coletiva: história de uma idéia e de um conceito. Saúde e Sociedade, v. 3, n. 2, p. 5–21, 1994.

SAFOUAN, M. Angústia-sintoma-inibição. Campinas, SP: Papirus, 1989. p.14–16

SILVA, M. J. DE S. E .; SCHRAIBER, L. B.; MOTA, A.. O conceito de saúde na Saúde Coletiva: contribuições a partir da crítica social e histórica da produção científica. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 29, n. 1, p. e290102, 2019.

VERAS, Marcelo. Saúde mental: uma clínica sem privilégios. CliniCAPS, Belo Horizonte , v. 1, n. 3, p. x, dez. 2007 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-60072007000300007&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 22 nov. 2023.

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